Diálogo entre Sócrates e Trasímaco sobre o que é a justiça
Introdução
“A República” de Platão é uma obra filosófica na forma de um diálogo que aborda temas como justiça, política e educação. No trecho abaixo temos parte do diálogo entre Sócrates e Trasímaco em busca de uma definição de justiça.
Trasímaco começa afirmando que a justiça é o interesse do mais forte, argumentando que os governantes, independentemente da forma de governo, criam leis baseadas em seus próprios interesses e punem aqueles que as desobedecem. Sócrates, em sua resposta, conduz Trasímaco a admitir que os governantes podem cometer erros e, portanto, ordenar leis que não sirvam aos seus interesses.
A discussão avança para uma segunda definição de justiça proposta por Trasímaco, onde ele alega que os governantes, enquanto governantes, não podem errar. Sócrates, utilizando analogias com médicos, pilotos e outras profissões, leva Trasímaco a admitir que verdadeiros governantes são aqueles que cuidam dos interesses de seus súditos e não servem meramente aos seus próprios interesses egoístas. Assim, o trecho revela uma investigação detalhada sobre a natureza da justiça e o papel dos governantes na definição e manutenção dessa justiça.
O diálogo abaixo é uma versão adaptada do original. Alguns trechos foram removidos para tornar a leitura mais breve e de fácil compreensão para estudantes do ensino médio. Para o texto completo, veja uma das edições disponíveis do diálogo de Platão.
Diálogo
Primeira definição de justiça
Trasímaco – Ouça, então, disse ele. Eu afirmo que a justiça nada mais é do que o interesse do mais forte. E agora, por que você não me aplaude? Já imaginava que não iria fazer.
Sócrates – Deixe-me primeiro entender o que isso quer dizer, respondi. Justiça, como você diz, é o interesse do mais forte. Mas o que significa exatamente isso, Trasímaco? Sem dúvida não está querendo dizer que, pelo motivo de Polidamante, o campeão de luta, ser mais forte do que nós e lhe fazer bem comer carne de vaca, isso também seja justo e adequado para nós, que somos mais fracos?
Trasímaco – Você é detestável, Sócrates! Compreende as minhas palavras no sentido mais prejudicial ao argumento.
Sócrates – De maneira nenhuma, meu bom amigo. Estou apenas tentando entender o que significa o que disse. Me explica isso com mais clareza.
Trasímaco – Bem, nunca ouviu dizer que as formas de governo diferem entre si, que há tiranias, aristocracias e democracias?
Sócrates – Sim, mas é claro que já ouvi!
Trasímaco – E que o governo de cada cidade é o que nele detém a força?
Sócrates – Sim, claro.
Trasímaco – E as diferentes formas de governo fazem leis democráticas, aristocráticas ou tirânicas tendo em vista os seus respectivos interesses. E ao estabelecer essas leis, os governantes deixam claro que é justo aquilo que lhes convém. Aquelas pessoas desrespeitam as leis são punidas. É isso que quero dizer quando afirmo que em todos os Estados rege o mesmo princípio de justiça: o interesse do governo. E, como quem detém o poder é o governo, a única conclusão que podemos tirar disso é que em toda parte só existe um princípio de justiça: o interesse do mais forte.
Sócrates – Agora eu te entendi. Não sei se está correta sua definição. Vamos examinar isso juntos.
Trasímaco – Examina, então!
Sócrates – É o que vou fazer. Mas primeiro me diz uma coisa. Admite que os governados obedeçam aos governantes?
Trasímaco – Mas é claro!
Sócrates – Mas os governantes dos Estados são absolutamente infalíveis ou às vezes eles também erram?
Trasímaco – Me parece claro que estão sujeitos a cometer erros como qualquer pessoa.
Sócrates – Então, ao fazerem as leis, podem fazer às vezes bem e outras vezes mal?
Trasímaco – É verdade.
Sócrates – Quando fazem bem, estão de acordo com seu interesse; quando fazem mal, o contrário. É assim que entende as coisas?
Trasímaco – Sim.
Sócrates – Mas o que os governantes ordenam através das leis deve ser feito pelos governados, e é isso que é a justiça?
Trasímaco – Sem dúvida.
Sócrates – Portanto, de acordo com o teu argumento, não só é justo fazer o que convém ao mais forte, mas também o seu contrário, isto é, o que não convém.
Trasímaco – O que está dizendo, Sócrates?
Sócrates – O mesmo que tu, segundo creio. Mas consideremos melhor: não concordamos que os governantes podem equivocar-se quanto ao seu próprio interesse naquilo que ordenam, e também que é justo obedecer-lhes? Não ficamos de acordo nesse ponto?
Trasímaco – Penso que ficamos.
Sócrates – Então, terá que concordar também que é justo fazer o que não convém aos governantes e detentores da força, uma vez que eles, sem querer, podem ordenar coisas contrárias aos seus próprios interesses. Pois se, como diz, a justiça é a obediência prestada às ordens dos governantes, então, mais sábio dos homens, como escapar da conclusão de que se ordena aos fracos fazer, não o que é de interesse dos mais fortes, mas o que os prejudica?
Segunda definição de justiça
Trasímaco – De modo algum. Pensas acaso que eu chame mais forte ao que erra, quando erra?
Sócrates – Sim, minha impressão foi que pensa exatamente isso, quando reconheceu que que o governante não é infalível, mas pode enganar-se algumas vezes.
Trasímaco – Você é traiçoeiro na argumentação, Sócrates! Porventura chamas médico ao que erra com relação aos seus doentes, precisamente quando erra? Ou o calculador que se engana num cálculo, na própria ocasião em que comete o erro, e com relação a esse erro? É verdade que costumamos dizer que o médico se enganou, ou o calculador equivocou-se, ou ainda o gramático; mas isso é apenas um modo de falar, pois o fato é que nem o gramático nem qualquer outro profissional cometem um erro enquanto é aquilo cujo título lhe damos; se errou, falhou a sua ciência e, portanto, deixou nesse caso de ser um profissional. Nenhum artista, ou sábio, ou governante erra quando é aquilo que o seu nome implica, embora se diga comumente que o médico ou o governante errou. Mas, para me exprimir com toda a exatidão, uma vez que és tão amigo dela, direi que o governante, enquanto governante, não pode errar; e, sendo infalível, sempre ordena o que é melhor para si mesmo. Portanto, como disse a princípio e agora torno a dizer, a justiça é o interesse do mais forte.
Sócrates – Dize-me: o médico, tomado no sentido estrito de que falas, é um curador de doentes ou um negociante? Lembra-te de que me refiro ao que é médico na realidade.
Trasímaco – Um curador de doentes.
Sócrates – E o piloto, isto é, o verdadeiro piloto, é um chefe de marinheiros ou um simples marinheiro?
Trasímaco – Um chefe de marinheiros.
Sócrates – O fato de navegar num barco não deve ser levado em conta, nem se deve chamar-lhe marinheiro; não é por navegar que recebe o nome de piloto, mas pela sua arte e pela sua autoridade sobre os marinheiros.
Trasímaco – Perfeitamente.
Sócrates – E cada um deles tem suas próprias conveniências?
Trasímaco – Têm, sem dúvida.
Sócrates – E a finalidade da arte perguntei, não é precisamente essa: buscar e proporcionar a cada um o que lhe convém?
Trasímaco – Sim, essa é a sua finalidade.
Sócrates – E acaso cada uma das artes tem outra conveniência que não a de ser a mais perfeita possível?
Trasímaco – Que queres dizer?
Sócrates – O seguinte: se me perguntasse se o corpo é autossuficiente ou necessita de algo mais, eu responderia: “Por certo que sim; pois o corpo pode adoecer e necessitar de cura; tem, portanto, interesses a que atende a arte da medicina, e para isso foi ela criada.” Não te parece que tenho razão em falar assim?
Trasímaco – Pena razão — respondeu ele.
Sócrates – Mas será a própria medicina imperfeita e, falando de um modo geral, será qualquer outra arte deficiente em alguma qualidade, assim como o olho pode ser deficiente quanto à visão e o ouvido quanto à audição, requerendo, por isso, o socorro de uma outra arte para atender aos interesses da visão e da audição? Acaso haverá na própria arte alguma espécie de imperfeição, e para cada arte se precisará de uma outra que examine o que lhe convém, e depois mais outra para a que examina, e assim por diante até o infinito? Ou é ela mesma que examina a sua conveniência? Ou quem sabe não necessita de si mesma nem de outra para examinar o que lhe convém? Não tendo defeitos nem imperfeições, não precisa corrigi-los por seus próprios meios nem por meios alheios, cumprindo-lhe tão somente buscar o que convém ao seu objeto. Pois cada arte permanece pura e incontaminada enquanto é verdadeira… ou, por outra, enquanto é exata e inteiramente o que é. Examina isto com o rigor que convencionamos e dize-me se é ou não assim.
Trasímaco – E o que me parece.
Sócrates – Então a medicina não considera o interesse da medicina, mas o do corpo?
Trasímaco – De fato.
Sócrates – Nem a equitação o que convém a ela mesma, e sim aos cavalos; e, de um modo geral, nenhuma arte se ocupa com as suas necessidades, pois não as tem; ocupa-se apenas com o que convém ao seu objeto.
Trasímaco – Assim parece.
Sócrates – E as artes, Trasímaco, governam e dominam aquilo que constitui o seu objeto.
Ainda que a grande custo, Trasímaco reconheceu também isso.
— Portanto, não há disciplina nenhuma que examine e ordene a conveniência do mais forte, mas sim a do ser inferior e governado por ela.
Fez uma tentativa de contestar também esta proposição, mas finalmente aquiesceu.
Sócrates – Sendo assim,nenhum médico, enquanto médico, considera o seu próprio bem no que prescreve, e sim o bem do doente; pois o verdadeiro médico é também um governante que tem por súdito o corpo humano… não é um simples negociante. Não foi nisso que concordamos?
Reconheceu que era assim.
Sócrates – E do mesmo modo o piloto, no sentido rigoroso da palavra, é um chefe de marinheiros e não um simples marinheiro?
Admitiu isso também.
Sócrates – Ora, muito bem: o tal piloto e chefe não examina nem ordena o que convém a ele, piloto, e sim ao marinheiro que lhe está subordinado?
Concordou, ainda que de má vontade.
Sócrates – E assim, Trasímaco, ninguém que tenha governo, na medida em que é governante, considera ou ordena o que convém a si mesmo, mas sim o que convém ao governado e sujeito à sua arte; e tudo quanto faz ou diz tem em mira unicamente isso.